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Comemorações, ditadura e sociedade: o sesquicentenário da Independência do Brasil (1972)

Commemorations, dictatorship and society: the sesquicentennial of the Independence of Brazil (1972)

Commémorations, dictature et société: le cent cinquantième anniversaire de l’indépendance du Brésil (1972 )

Conmemoraciones, dictadura y sociedad: el sesquicentenario de la Independencia de Brasil (1972)

CORDEIRO, Janaína Martins. . A ditadura em tempos de milagre: comemorações, orgulho e consentimento. Rio de Janeiro: FGV, 2015. 360 p.

A descoberta e a produção de novas fontes, assim como o surgimento de novos métodos e abordagens teóricas, provocaram a renovação dos estudos sobre a ditadura militar. Versões longamente partilhadas e estereótipos estão sendo superados, ao passo que, na esteira das revelações feitas pela Comissão Nacional da Verdade e de um expressivo crescimento do interesse popular, novas informações não param de vir à tona. Silêncios e esquecimentos estão sendo superados. E temas até então tabus passaram a ser encarados, sem parti pris, por uma nova geração de pesquisadores. Como apontam diversos especialistas, vivenciamos uma mudança geracional. Nessa dinâmica, uma questão tem despertado instigantes debates: o pacto social firmado entre regime militar e sociedade brasileira.

É nesse contexto que veio a público o livro A ditadura em tempos de milagre: comemorações, orgulho e consentimento, de Janaína Martins Cordeiro (2015). A publicação é derivada de pesquisa desenvolvida, entre 2008 e 2012, no Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal Fluminense. A tese que resultou no livro trata das relações estabelecidas entre ditadura militar e sociedade brasileira. Demonstra, mais precisamente, como as celebrações do sesquicentenário constituíram-se em um mecanismo de reafirmação do consenso social estabelecido em torno do regime militar.

Cordeiro estruturou seu percurso em nove capítulos. No primeiro, “Funeral de um ditador”, a autora aborda o silenciamento dos apoios que diversos segmentos sociais deram à ditadura militar, fenômeno que, como é sabido, ganhou força na sociedade brasileira junto com a implementação do projeto de abertura política proposto por Geisel. Para Cordeiro, um episódio emblemático do referido fenômeno é o ostracismo ao qual Médici foi relegado. Por meio da análise da repercussão do adoecimento, da morte e do cortejo fúnebre do ex-presidente (1985), a autora explica por que a popularidade obtida por Médici nos anos do “milagre econômico” foi silenciada, chamando a atenção para a importância de tal silenciamento na construção do consenso democrático estabelecido na década de 1980.

O segundo capítulo, “O enterro do imperador foi uma festa”, aprecia outro cortejo fúnebre: o de d. Pedro I - eleito o “grande” herói a ser homenageado durante os festejos do sesquicentenário. Parte da programação das celebrações, o cortejo fúnebre de Pedro ocorreu em um cenário distinto do de Médici. E despertou, de acordo com Cordeiro, sentimentos dessemelhantes aos observados após a morte do ex-presidente. Como demonstra a autora, na ocasião grande parte da sociedade brasileira - deslumbrada com o “milagre econômico” - costumava rememorar com orgulho o passado nacional, associando positivamente Pedro e Médici: o primeiro era lembrado como o responsável pela independência política do Brasil, e o segundo, reconhecido como o comandante da independência econômica.

Em “Uma festa para Tiradentes: os Encontros Cívicos Nacionais e a abertura dos festejos”, terceiro capítulo, conhecemos a mobilização em torno de outro herói nacional. Conforme a autora, embora Pedro tenha sido escolhido o herói “maior” do sesquicentenário, Tiradentes não foi deixado de lado pelo regime militar, que fez uso de diversos elementos associados ao culto de sua figura - como o martírio, o sacrifício em prol da pátria. Como explica Cordeiro, não à toa 21 de abril foi o dia em que ocorreram os Encontros Cívicos Nacionais, que selaram o início oficial dos festejos. Às 18 horas e 30 minutos dessa data, um discurso de abertura pronunciado por Médici foi reproduzido em diversos recantos do país, seguindo-se de cerimônias de hasteamento da bandeira nacional, bem como de diversos eventos artísticos, culturais e esportivos.

O quarto capítulo, “Da solenidade das comemorações à festa do futebol”, investiga a “Taça Independência” - campeonato que contou com a participação de 20 seleções nacionais, número que, como destaca Cordeiro, excedeu em quatro o total de representantes que disputaram a Copa de 1970. A autora demonstra como a “Taça Independência” - evento organizado pela então Confederação Brasileira de Desportos em parceria com a comissão executiva das festividades - constitui-se em um dos elementos reafirmadores do pacto social firmado entre ditadura militar e sociedade brasileira. Além disso, Cordeiro explica como o referido torneio sintetizou não apenas o espírito festivo que permeou as comemorações do sesquicentenário, mas também, de modo geral, os anos do próprio “milagre econômico”.

No quinto capítulo, “D. Pedro I vai ao cinema: ‘Independência ou morte’, as cores do milagre e a memória”, Cordeiro aborda o filme “Independência ou morte” - produzido por Oswaldo Massaini e dirigido por Carlos Coimbra. Segundo a autora, ao contrário do que muitos pensam ainda hoje, a produção cinematográfica - que narra os acontecimentos que levaram à Independência por meio da trajetória de Pedro - não foi uma iniciativa oficial. Tampouco contou com recursos públicos para sua elaboração. Entretanto, como demonstra Cordeiro, “Independência ou morte” foi apropriado pelo regime militar. Inclusive, de acordo com a autora, o filme - talvez em função de seu caráter não oficial - explorou como nenhum outro evento os valores e sentimentos nacionais exaltados ao longo das comemorações do sesquicentenário.

“A Comissão Executiva Central (CEC) entre o consenso e o consentimento” é o título do sexto capítulo. Nessa seção, Cordeiro explica como a CEC, responsável pela execução dos festejos, foi arquitetada por seu líder, o general Antonio Jorge Corrêa, assim como pelos intelectuais de instituições civis que a compunham - Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Associação Brasileira de Imprensa, Conselho Federal de Cultura, entre outras. Ademais, a autora demonstra que a referida comissão acumulou uma quantidade expressiva de correspondências, que não eram apenas institucionais. Conforme Cordeiro, grande parte das cartas endereçadas à CEC foram enviadas por populares, o que proporcionou à autora a oportunidade de analisar, também no sexto capítulo, um vasto painel de opiniões de cidadãos comuns sobre as festividades do sesquicentenário.

Em “O sesquicentenário das vozes dissonantes”, sétimo capítulo, Cordeiro aborda um conjunto de opiniões divergentes ao regime militar. A autora alega não ser possível defender uma tese acadêmica sobre o consenso social estabelecido em torno da ditadura militar sem verificar as múltiplas vozes dissonantes também presentes na sociedade brasileira. Embora minoritárias e diversificadas entre si, tais vozes expressavam, segundo Cordeiro, importantes correntes de opinião. Dentro dessa perspectiva, a autora explica por que o estudo das referidas correntes é um aspecto crucial para uma melhor compreensão das complexidades inerentes ao pacto social instituído entre regime militar e sociedade brasileira, tal como o lento processo de abalo desse mesmo pacto a partir da segunda metade da década de 1970.

No oitavo capítulo, “O colorido fim de festa: a apoteose final da ditadura”, Cordeiro analisa alguns eventos associados ao encerramento das celebrações do sesquicentenário - notadamente, as paradas militares de 7 de setembro, um espetáculo de som e luz ocorrido no Museu do Ipiranga e a Feira Brasileira de Exportação: Brasil Export 72. De modo geral, a autora demonstra como é que - por meio da utilização de tais eventos, que contaram com ampla participação popular - a ditadura militar conseguiu estabelecer diálogos com a sociedade brasileira. Para Cordeiro, o escopo central dos referidos diálogos era chamar a atenção, por meio de usos políticos do passado, para o presente considerado favorável - marcado, em grande medida, pelo “milagre econômico”, assim como por uma expectativa otimista em relação ao futuro do país.

Por fim, em “Anos de chumbo ou anos de ouro? Uma história sempre em reconstrução”, nono capítulo, Cordeiro desenvolve um balanço final sobre as relações estabelecidas entre ditadura militar e sociedade brasileira. A partir da abordagem da oposição “anos de chumbo” versus “anos de ouro”, a autora analisa a complexidade dos comportamentos sociais sob o regime militar. Cordeiro debate, mais especificamente, atitudes como a passividade e a indiferença, que, assim como a colaboração ativa, contribuíram, de acordo com a autora, para a construção do consenso social estabelecido em torno da ditadura militar. Ao mesmo tempo, formula reflexões sobre a construção de uma memória social sobre o período do regime militar, lançando luzes sobre determinados mitos, silêncios e esquecimentos.

Ao tomar as comemorações do sesquicentenário como objeto de estudo, Cordeiro nos ajuda a compreender melhor as relações firmadas entre ditadura militar e sociedade brasileira. Em outras palavras, nos auxilia a pensar o tema a partir de um ângulo de visão que vai além das conhecidas interpretações maniqueístas criadas sobretudo a partir do contexto da redemocratização. E que ainda hoje são bastante reiteradas em alguns espaços de debate político. Como se sabe, tais versões costumam apreender o assunto por meio do estabelecimento de polos antagônicos - Estado repressor versus sociedade vitimizada, colaboradores versus resistentes, bem versus mal, entre outros. A autora demonstra que, mais do que isso, existiu uma “zona cinzenta” - eivada de diversidades e ambivalências - situada entre os polos citados, em que se podem observar variadas formas de se comportar diante do regime militar.

Entre esses comportamentos, é possível verificar, de acordo com Cordeiro, um conjunto de práticas de consentimento em relação à ditadura militar, que, por sua vez, contribuíam para reafirmar o consenso social estabelecido no período. Como exemplo, posso citar, entre diversas outras atitudes analisadas pela autora, a conduta dos torcedores brasileiros durante a “Taça Independência”, que, empolgados com a competição, lotavam as arquibancadas dos estádios nos jogos do “escrete canarinho”. Como explica Cordeiro, esses torcedores compunham, de fato, a mise-en-scène do regime militar, participando ativamente dos festejos oficiais, vestindo o verde e o amarelo, carregando suas bandeiras, cantando o hino e as canções de apoio, ovacionando Médici ao vê-lo na tribuna de hora do estádio.

Dentro desse prisma, Cordeiro defende que, mais do que um mero instrumento de manipulação e controle ideológico, as celebrações do sesquicentenário constituíram-se em um mecanismo de reafirmação do consenso social estabelecido em torno da ditadura militar. Isso nos ajuda a compreender, entre outras coisas, que os brasileiros não eram agentes passivos diante das estratégias de propaganda política promovidas pelo regime militar, que só ganhou força porque, de fato, encontrou resposta na sociedade. Ajuda-nos a compreender também, que, entre a adesão e a resistência, existia uma diversidade de comportamentos sociais que, juntamente com a coerção, a repressão, a propaganda e a censura, contribuíram para a sustentação da ditadura militar ao longo de seus anos de vigência.

De modo geral, Cordeiro trata o regime militar como um produto social. Ou seja, como algo que foi gestado no interior da própria sociedade brasileira. Dessa forma, a autora evidencia as fragilidades de versões longamente partilhadas, como as que defendem que a ditadura militar só foi viável em função das instituições e práticas coercitivas e manipulatórias, ou, então, que a sociedade brasileira foi essencialmente resistente ao regime militar. Indo de encontro a essas versões, Cordeiro demonstra, mais precisamente, como é que, ao longo da ditadura militar, foi formado um consenso social pautado por padrões não democráticos. Consenso esse que, como explica a autora, não foi encarado como algo problemático por grande parte dos cidadãos brasileiros.

Em vista do exposto, ela classifica nossa última ditadura como de caráter “civil-militar”. Nesse ponto, discordo dela. De acordo com o que tem afirmado Carlos Fico, acredito que não é o consentimento ou, até mesmo, o apoio engajado que define a natureza dos eventos da história, mas sim a efetiva participação dos agentes em sua configuração. Nesse sentido, parece-me ser pertinente classificar o golpe de 1964 como de feitio “civil-militar”, pois, além do apoio, ele foi efetivamente dado por civis. Porém, ainda conforme o autor, compreendo que a ditadura subsequente ao golpe foi eminentemente militar. Afinal, como Fico chama a atenção, muitos civis proeminentes que deram o golpe foram logo afastados pelos militares, justamente porque punham em risco seus projetos de poder. Mas isso é assunto para ser discutido mais detalhadamente em outra oportunidade.

Controvérsias à parte, o que cabe destacar neste momento é que Cordeiro, afinada com a recente renovação dos estudos sobre o regime militar, apresenta análise qualificada e original. A partir da abordagem de aspectos variados das comemorações do sesquicentenário, a autora demonstra como - em um momento conhecido por muitos como “anos de chumbo” - a ditadura militar se apresentou como legítima, sendo, inclusive, capaz de convencer parcelas significativas da sociedade brasileira. Ao percorrer esse caminho, aponta para a necessidade de compreendermos melhor o complexo período do governo Médici: anos de chumbo e, simultaneamente, de ouro, marcados pelos horrores causados por graves violações aos direitos humanos, mas, também, pelos sentimentos de orgulho e otimismo em relação à pátria, que experimentava o “milagre econômico”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2016

Histórico

  • Recebido
    10 Mar 2016
  • Aceito
    14 Mar 2016
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